sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Mandil

Abençoada por “Adonai”, a noiva entra coberta de um manto de pureza; era uma das noivas mais belas, seu semblante de “Sholomite”, mais parecia uma “Ahava”, a primeira das mulheres a existir, uma verdadeira árvore frutífera pronta a se tornar abundante.

A sua chegada provocava uma turbulência de emoções, com todo o respeito e “aferiação”, os corações batiam ritmicamente badaladas de satisfação; sua imagem de feminilidade e força era tão inusitada que evocava uma volúpia divina.

As cantorias logo iniciaram, o “simchat” penetrava nas mentes de todos os presentes, contagiando até mesmo os treteiros e "avoengos". A tranquilidade e a paz agora entravam sem reinar, consultando o pensamento de cada indivíduo, indagando se seriam bem-vindos. Pouco a pouco a energia era inspirada, abrindo os brônquios mais fechados e aflitos.

As famílias, os “dartros”, todos sem exceção começavam a se conjuminar; mães, pais, filhos se aproximavam até mesmo emocionalmente. O dever, o trabalho, o “camuelo” e as obrigações, haviam sido deixados para trás. O ar festivo embriagava o ambiente.

A benção final é proclamada: “Baruch...” A noiva finaliza sua aparição sem o “mandil” e os homens presentes mantiveram o solidéu sobre suas cabeças. Essa experiência transformadora causa ao mesmo tempo enlevo, despertar e “achegas” para os grandes mistérios do mundo, e nunca mais seremos os mesmos.


Nota da autora: esse texto é uma metáfora do “shabat” : a noiva representaria o dia sagrado do sábado para o povo judeu.

Palavras em hebraico:

“Adonai”: D’eus
“Sholomite”: paz
“Ahava”: Eva
“Simchat”: alegria
“Baruch”: benção

Palavras escolhidas aleatoriamente do dicionário:

Mandil: véu, turbante
Aferiação: ato de conferir, avaliar, estimar
Dartros: designação genérica de doenças de pele.
Avoengos: antepassados, avós
Camuelo: avarento
Achegas: rendas suplementares

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Orelhão

Ploft, primeiro saiu uma; ploft depois a segunda. E em seguida o restante da cabeça.
A mãe levou um susto: - Nossa parece um ratinho com orelhas gigantes!
Era um ser minúsculo, quase prematuro, a tez branca, pálida. A primeira providência que d. Helena tomou em relação a sua nova cria foi consertar pessoalmente aquelas conchas auditivas; afinal sabia que se nada fizesse, seu filho seria apelidado de Dr. Spock, e como era uma boa mãe, logo tratou de colar um esparadrapo grudando cada extremidade na epiderme.
À medida que o tempo passava as orelhas também cresciam e se tornavam de abano; de modo que todo esforço de d. Helena para não ridicularizarem seu filho foi em vão. Seu novo apelido na escola era Dumbo.
D. Helena ficou de orelha em pé. O que fazer agora? Recorreu a otorrinos, cirurgiões plásticos, curandeiros, e nada adiantava. Seu filho era um verdadeiro orelhudo. O jeito era aceitar e nao dar ouvidos aos outros.
Foi assim que descobriram no menino uma incrível aptidão de escutar conversas. A primeira vez que foram almoçar fora, ele foi capaz de ouvir as conversas paralelas de todas as mesas e ainda discutir o assunto tratado na sua própria. Ele era um gênio, sua talento intelectual estava acima da média. D.Helena nao podia acreditar nos seus ouvidos, ai se encontrava uma solucao, aprofundar estas habilidades raras.
O garoto prodígio aprendeu rapidamente inglês, francês, italiano e alemão; possuía um ótimo ouvido para línguas, falava todas como um nativo. Aprendeu a tirar letras de música de ouvido, como autodidata, tocando vários instrumentos: piano, saxofone, violão e violino. Ganhou inúmeros prêmios musicais, se tornou interprete simultâneo de várias línguas, traduzindo mais de uma língua por vez. Percorreu o mundo participando de congressos, era uma sumidade.
Quando cansou da vida de estrela apenas se tornou um agente ouvidor secreto do governo e nunca mais baixou as orelhas!

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Do Comentário

Entreportinhola adentro e logo me meto embaixo das cobertas, pensando qual seria a programação de TV que ele tinha escolhido desta vez. Muitos dos seus seriados favoritos, eu achava chatíssimos, aquele lengalenga americano, no qual nada acontece e sempre encharcado de mulheres que só existem em capa de revista.
Para minha surpresa, era um documentário sobre o CEAGESP, o conhecido Ceasa. Resolvo deixar a minha leitura noturna de lado, já que algo mais não aconteceria; apesar da minha insinuardência...
O repórter se focou na vida de alguns feirantes, eram descendentes de japoneses e italianos. O depoimento da família japonesa era o mais comovente; uma senhora conta como conseguiu criar os três filhos sozinhamente. Tinha um sorriso legítimo, de alguém que viveu de verdade; logo pensei, mulher bonita era ela, sem produção nenhuma, sem moda. Tinha uma expressão de alguém com uma vida bem realizada. Olhei para o lado, e vi o sorriso sarcástico do meu marido que disse que eu deveria um dia ser igual a ela.
Apagamos a luz e fomos... De repente me dei conta que havia um ser estranho entre nós. Acendi a luz e encontrei um ratinho morto. Morri de nojo daquele animal asqueroso. Liguei imediatamente para um infectologista e saber as chances de ter contraído uma leptospirose. Ainda me lembrei da feirante; ela que teve que conviver com ratos na sua trajetória de navio do Japão ao Brasil, e nem por isso morreu ou adoeceu!
Consegui naquela noite mesmo ficar parecida com a feirante, mas conviver com ratos não é um privilégio só nosso; a política brasileira está infestada deles!

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Poemão

Tem trabalho?

Tem profissão?

Tenho filhos de montão,

Cuido de uma construção,

Tenho um marido reclamão

E dizem que eu não tenho ocupação.

Que bela reputação!

Trampolim

Os degraus que levavam ao trampolim eram muito parecidos com a longa escada que tantas vezes havia subido na sua casa em Frankfurt. Tinha deixado para trás um jardim com seus pinheiros altivos de um clima seco e gélido. Ainda na Alemanha de sua infância desenhava coqueiros de uma terra distante com tanta veemência, que era como se tivesse profetizado a sua chegada aos trópicos.

O frio que sentia na barriga, lá do alto do trampolim, fazia recordar a ansiedade que teve ao levar um soco no estômago de um colega do Kidergarten. Os preparativos para uma mudança súbita já estava nos planos da família, de modo que este foi o último acontecimento ocorrido na sua terra natal.

O ruído das molas do balançar da enorme prancha gerava uma imensidão de felicidade. Por muitos anos o único som produzido por vibrações acústicas que ela ouvia, era oriundo de um sopro cardíaco, uma anomalia no seu coração, que havia desaparecido por completo, quase que por um milagre, pouco após a sua chegada a São Paulo.

A tábua de madeira pintada de branco e descascada pelo tempo, já estava trepidando; não estava convencida se valeria a pena uma medalha nacional. O que mais importava agora não era mais o salto mortal e sim o salto vital. Ela havia se dedicado ao mergulho mais visceral de sua alma para encontrar a PAZ e a felicidade. Não se tratava mais de ganhar e vencer, e sim de viver.

SPLASH, o impacto na água fria lhe fazia sair do sonho para retornar a realidade, e com toda energia e agilidade de uma garota de 12 anos, subia novamente as escadarias para um novo pulo e novas lembranças.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

o Ogro

Apesar de ter o dobro da minha idade, a pele ainda possuia uma elasticidade fora do comum, a genética havia sido muito generosa com ele; o ar jovial e espirituoso também o remetiam a uma faixa etária mais baixa. O rosto completamente redondo, como uma maçã, marcado por um olhar penetrante. Aqueles olhos imensos; duas enormes bolas de gude saltando duma esfera alongada, como o sol se pondo no final do horizonte; no entanto quando se enfurecia, seus olhos pareciam saltar do globo ocular, esbugalhados, dois faróis direcionados para ofuscar a vítima. Sua expressão chamava muita atenção, olhar firme, decidido, autoritário, dominador e principalmente provocador. A cabeça sempre permanecia um pouco inclinada para o alto, dando um aspecto de superioridade. Os cabelos eram lisos, ondulados levemente nas pontas, formando curvas desalinhadas por toda cabeça numa rebeldia inata. Seu perfil era suavemente de um prognata, entretanto tinha mais características de um aristocrata. Os dentes enfileiravam-se em perfeita harmonia, com tamanhos semelhantes parecendo ter acabado de sair de um molde de um ortodentista. Os incisivos eram brancos, mas os caninos eram amarelados pelo descuido da escovação. O sorriso era malicioso e demonstrava sempre um raciocínio rápido, uma sagacidade e uma grande satisfação pela vida. Seu tronco era grande e largo, a protuberância da barriga se assemelhava a uma bola de basquete, sustentada por duas colunas bem formadas e robustas num ângulo obtuso, até chegar aos pés, direcionados como flechas para os lados, num formato de um relógio marcando dez e dez. Era simplesmente um gigante atraente e acolhedor.

domingo, 15 de novembro de 2009

AS TRÊS PORQUINHAS

O patriarca da família dos bunodontes contemplava sua prole; oriundos de uma longa estirpe de mamíferos bem-sucedidos e limpos; havia se sacrificado para lhes proporcionar a melhor educação. Sua vida atual era uma cornucópia de anseios e perturbações, principalmente em relação ao futuro incerto de algumas de suas leitoazinhas.

A primogênita era a que estava melhor estabelecida. Sua profissão de intérprete simultânea era muito requisitada nas fazendas, já que pouquíssimos animais eram capazes de compreender o “relincho”, o “mugidez” e o “cacarejo”; falava estas línguas sem sotáque, com muita destreza.

A leitoa do meio, a famosa sanduíche de mortadela, era uma preocupação. Sua existência estava instável , trocava regularmente de emprego, sem se fixar em nada, fazendo bicos ali e aqui, se virando. Era traumatizada por ter visto tantos parentes assassinados para serem vendidos como lombinho. Na primeira oportunidade, imigrou para Israel, num kibbutz casher, onde sabia que dificilmente viraria um prato de leitão à pururuca .

A terceira, a caçula, era a mais complicada, estava desempregada e gastava toda a mesada do pai no jogo do bicho; ainda ajudava à vender outros porquinhos no mercado negro a fim de serem transformados em presunto crú.

O ancião progenitor balançava a cabeça e pensava, na sua época a vida era mais fácil, o único perigo era ser comido pelo lobo mau, mas agora com esta gripe suína, quem estaria salvo?